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Pesquisadore(a)s do mundo todo
Terça-feira, 6 de abril de 2021 - O Brasil registra 4195 mortes pela Covid. Ao todo, são mais de 340 000 óbitos contabilizados desde o começo da pandemia. Se o coronavírus afeta todos os países do globo, a amplitude da catástrofe sanitária que acomete o país não pode ser dissociada da gestão desastrosa do presidente Jair Bolsonaro. O presidente e seus cúmplices devem ser responsabilizados pela condução da crise sanitária no Brasil, que não somente fez explodir o número de mortes mas acentuou as desigualdades no país.
Em inúmeros momentos, o presidente da república brasileira se referiu à covid-19 como « gripezinha », minimizando a gravidade da doença. Bolsonaro criticou as medidas preventivas, como o isolamento físico e o uso de máscaras, e por diversas vezes provocou aglomerações. Chegou a propagar o uso da cloroquina, embora cientistas alertassem para os efeitos tóxicos do uso do fármaco para combater a covid. Pesquisadores que publicaram estudos que demonstravam que o uso do medicamento aumentava o risco de morte em pacientes com Covid chegaram a ser ameaçados no Brasil. Bolsonaro desencorajou ainda a vacinação, chegando a sugerir por exemplo que as pessoas poderiam se transformar em « jacaré ». Em meio ao negacionismo, proliferação de falsas informações e ataques à ciência, em plena crise sanitária, o presidente chegou a mudar quatro vezes de ministro da saúde.
A ciência brasileira está sofrendo diversos ataques : cortes e mais cortes orçamentários que ameaçam pesquisas e colocam o trabalho de cientistas em xeque ; instrumentalização da ciência à fins eleitoreiros, como bem mostram as declarações do presidente descredibilizando o trabalho de cientistas durante a crise sanitária. Esses ataques, no entanto, vão além do contexto da covid-19. Basta lembrar os ataques feitos por Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em um contexto alarmante diante dos níveis de desmatamento da Amazônia.
Ao desmentir a ciência, Bolsonaro não somente fere a comunidade científica, mas toda a sociedade brasileira : são diários os recordes de mortes pela covid, dados da Fiocruz indicam por exemplo a circulação de 92 cepas do coronavírus no Brasil, o que torna o país uma gigantesca fábrica de variantes ; para além temos ainda os impactos sobre o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global.
Em um contexto de crise sanitária, de agravamento das desigualdades, de mudanças climáticas, este tipo de conduta é inaceitável e o autor deve ser responsabilizado. Nós nos preocupamos com o agravamento da crise sanitária no Brasil, com os ataques à ciência e por meio desta carta aberta nós, acadêmico(a)s de todo o mundo, demonstramos nossa solidariedade com os/as colegas no Brasil, cujas liberdades estão ameaçadas e com a população brasileira que é afetada diariamente por essa política destrutiva.
por Adalberto Cardoso e Thiago Brandão Peres
No mês anterior à posse presidencial, surgiu nas redes sociais digitais um vídeo vazado de uma reunião entre deputados do partido Democratas (DEM) e Jair Bolsonaro. Na gravação de celular, vemos o presidente eleito discursando sobre os rumos que seu governo pretendia dar à economia. O trecho que recebeu relativa repercussão na mídia foi sua solução para fazer florescer (no jargão do mercado financeiro) o business environment brasileiro: “a legislação trabalhista, no que for possível, sei que está engessado no artigo sétimo [da Constituição Federal], mas tem que se aproximar da informalidade. […] É horrível ser patrão no Brasil com esta legislação que está aí”[1]. O referido artigo versa sobre os direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, e assegura um mínimo de proteção social: garante o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o salário mínimo fixado em lei com a devida obrigação de reajustes periódicos, a irredutibilidade do salário e além de estabelecer que nenhum trabalhador receba renda inferior ao salário mínimo.
Ora, “se aproximar da informalidade” expressa, de forma crua e sem rodeios, a ideia por trás de outra expressão, mais fashion e adequada ao catecismo neoliberal, de que é preciso modernizar as leis trabalhistas. “Modernizar”, aqui, carrega uma valência positiva, quer dizer, sugere certa homologia com ideias como progresso, futuro, melhoria, enquanto as contrapõe a atraso, arcaico, ou nas palavras do Bolsonaro, a “engessado”. Modernização das leis trabalhistas é uma daquelas expressões que, tal como afirmou Bourdieu (1998), induz a produção de uma espécie de “gota a gota simbólico” em favor da hegemonia neoliberal. A diferença entre ambas é somente o grau de má fé: a primeira é explicitamente contrária ao direito do trabalho, que torna “horrível ser patrão no Brasil”, enquanto a segunda se apresenta como forma de criar mais empregos e (ironicamente) reduzir a informalidade – ainda que isso não tenha lastro na realidade.
Nesse quadro, não pode haver subterfúgios sobre o real significado da reforma trabalhista. Entendida como o conjunto de medidas provisórias e decretos presidenciais, emendas constitucionais e projetos de lei do Congresso Nacional e jurisprudências em geral das instâncias superiores do judiciário, a reforma objetivou enfraquecer a proteção do trabalho no Brasil sob a justificativa de “melhorar o ambiente de negócios” e gerar novos empregos através da redução do custo da força de trabalho. Trata-se, antes de tudo, de um processo continuado de erosão do assalariamento e das proteções e direitos a ele associados.
A alusão à informalidade como ideal a ser alcançado é particularmente assustadora, quando nada por demonstrar total ignorância sobre as convenções e tratados internacionais de redução da informalidade dos quais o Brasil é signatário, no âmbito da Organização Internacional do Trabalho. E também por ignorar, em meio à pandemia, que os trabalhadores informais são os mais expostos ao SARS-CoV-2, o novo coronavírus.
Ora, cerca de seis meses após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia, a América Latina (e a América do Sul em particular) se tornou a região mais afetada do mundo em termos de número de mortes[2]. O aumento exponencial da gravidade da situação latino-americana está estreitamente relacionada com a persistente informalidade do mercado de trabalho. Nas atividades informais, homens e mulheres obtêm sua renda, mais das vezes, com transações comerciais ou com prestação de serviços por meio do contato físico direto, seja nas ruas, nos mercados populares, nas pequenas bancas de alimentos ou produtos, no trabalho doméstico etc. As necessárias políticas de distanciamento social para prevenir a transmissão comunitária do vírus, portanto, impactam sobremaneira os meios de obtenção de renda desses trabalhadores.
No Brasil, cerca de 35 milhões de trabalhadores informais (assalariados sem carteira, autônomos não contribuintes para a previdência social, trabalhadores domésticos) foram severamente afetados pela COVID-19[3]. São pessoas que, para chegar ao trabalho, precisam enfrentar o transporte público lotado. Não à toa, estudo da Unifesp para a cidade de São Paulo mostrou que a correlação entre os bairros onde as pessoas usam veículos particulares para transporte e o número de casos positivos foi de apenas 0,39 em julho, enquanto nos bairros onde a principal forma de deslocamento para o trabalho é por transporte público ou a pé a correlação foi substancialmente maior: 0,80 e 0,78 respectivamente[4]. Nas palavras do coordenador da pesquisa, Kazuo Nakano, “a quantidade de viagens por transporte coletivo explica 80% da quantidade de óbitos”. Isso ajuda a explicar por que o Brasil precisou enterrar em caixões vedados, não raro sem a possibilidade de velório ou outro ritual fúnebre, cerca de 13,7% dos óbitos em razão da COVID-19 no mundo (em outubro de 2020), muito embora os brasileiros somem apenas 2,5% da população mundial.
A informalidade e a precariedade das condições de trabalho, almejadas pelo presidente Bolsonaro como “mundo ideal” para as empresas e objetivo da reforma trabalhista tal como definida aqui, estão associadas a outros efeitos da pandemia. Embora necessário e muito bem vindo tendo em vista a necessidade de isolamento social, o auxílio emergencial representou perda substancial de renda para os trabalhadores informais. No primeiro trimestre de 2020, portanto às portas da pandemia, a renda média dos trabalhadores por conta própria foi de R$1.700, segundo a PNAD Contínua 2020-1, e eles eram 24 milhões de brasileiros. Dos domésticos, R$990, e eles eram 6 milhões. Os assalariados sem carteira eram 11 milhões de brasileiros, e sua renda média foi de R$1.550. Ou seja, a ajuda reduziu a renda de 41 milhões de brasileiros a entre um terço e a metade do que recebiam, em média, antes da pandemia. Isso significou retirar de circulação cerca de R$64 bilhões de reais por mês, para uma população que não poupa, e que, portanto, faz girar a economia com o pouco que ganha, quase tudo gasto com as necessidades básicas de alimentação, vestuário, moradia, transporte e saúde. Como os aportes mensais aos beneficiários ficou em cerca de R$26 bilhões, em média, segundo a PNAD-COVID, a maior parte destinada a desempregados e beneficiários do Bolsa Família, os trabalhadores informais afetados pela expressiva perda de renda viram-se compelidos a retornar ao trabalho. Na verdade, parte substancial deles/as nunca deixou de trabalhar.
De fato, em maio de 2020, proporção minoritária dos ocupados (apenas 18,1%) estava afastada do trabalho em função da pandemia, segundo a PNAD-COVID[5]. As taxas eram mais altas nas ocupações tipicamente informais, como empregadas/os domésticas/os (29%), vendedores ambulantes, feirantes, comerciantes de rua (41%), cabeleireiros, manicures e afins (igualmente 40%) e cuidadores/as (28%). Mas, entre maio e agosto a taxa de não trabalho havia caído para apenas 4,7%, e a relação entre a variação nessa taxa e a proporção de trabalhadores informais na ocupação está expressa no Gráfico 1. Com R2 superior a 0,43, a relação é clara, ainda que não linear. Quanto mais informais as ocupações, maiores as taxas de retorno ao trabalho, confirmando o que se disse sobre a insuficiência do auxílio emergencial em suprir as necessidades básicas das famílias beneficiadas. A relação é clara também quanto ao ramo, se bem que, neste caso, a função é exponencial, isto é, se intensifica com o aumento da informalidade do ramo. A informalidade está associada a menores taxas de isolamento social por horas não trabalhadas, logo, de maior exposição ao vírus nas ruas, no trabalho e, sobretudo, no transporte público.
Além disso, investigação realizada por pesquisadores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) em parceria com o Institut de Recherche pour le Développement (IRD, França) observou forte correlação entre a proporção de trabalhadores informais de um determinado município, o número de casos positivos e o de óbitos (Roubaud et al., 2020). Analisando os dados disponíveis para as 5.570 cidades brasileiras, o modelo econométrico estimou que cada 10 pontos percentuais a mais na proporção de informais está associado a um aumento de 29% na taxa de contágio e 38% na taxa de mortalidade pela COVID-19[7].
A informalidade, nessa perspectiva, está muito longe de significar modernização das relações de trabalho, como quer o discurso do governo federal. Ao tornar ainda mais vulneráveis as condições de trabalho e de vida das populações que vivem do trabalho, a informalidade as expõe a riscos múltiplos, e neste momento, está fortemente associada à letalidade da pandemia. Ao associar informalidade ao termo “modernização”, Bolsonaro age de má fé. Atribui valência positiva a uma condição laboral que de fato representa imenso retrocesso civilizatório. Destruir o direito do trabalho como projeto de governo é a expressão mais saliente da indiferença moral da elite governante em relação ao destino das maiorias subalternas. E tudo isso sob aplausos de seus aliados no mundo das finanças e das grandes empresas, ou do grande capital.
[1] Bolsonaro defende mudanças nas leis trabalhistas (acessado em novembro de 2020)
[2] América Latina é a região do mundo com mais mortes por Covid-19 (acessado em novembro de 2020).
[3] Mortes por Covid-19 têm mais relação com autônomos, donas de casa e transporte público (acessado em novembro de 2020).
[5] O questionário da pesquisa pergunta aos que estavam afastados do trabalho na semana anterior, a razão do afastamento. E aos que tinham trabalho, quantas horas trabalharam na semana anterior. A proporção que utilizamos é dos que responderam estar afastado em função da pandemia e ter trabalhado zero horas.
[6] No grupo de ocupações foi suprimido um outlier (mais de dois desvios padrão da média).
[7] Roubaud, François; Razafindrakoto, Mireille; Saboia, João; Castilho, Marta; Pero, Valéria. (2020). The municipios facing COVID-19 in Brazil: socioeconomic vulnerabilities, transmisssion mechanisms and public policies. Texto Para Discussão 032/2020, IE-UFRJ. O estudo encontrou, ainda, taxas de mortalidade mais elevadas a) na população de raça/cor e etnia preta e parda e também entre os mais pobres – um aumento de 10 pontos percentuais no total de pobres em determinada cidade prevê aumento de 73% no número de óbitos; b) o resultado da votação em primeiro turno na eleição presidencial de 2018 – um aumento de 10% no número de votos em favor de Bolsonaro em determinada cidade prevê um acréscimo de 12% no número de óbitos, o que demonstra que o presidente e seu exemplo, por atos e palavras, estão intimamente associados a maiores taxas de letalidade da COVID-19.
Navegando de bicicleta por uma rua do Rio de Janeiro inundado, Rudi é abordado por uma repórter de TV, que questiona se ele não pararia de trabalhar no meio daquele dilúvio: “se parar, eles bloqueiam a gente (...), mandei foto e tudo, mas eles falaram, não posso fazer nada, tem que ir”. Patentemente temeroso, o entregador hesita antes de revelar o seu nome, seguindo a sua travessia[1]. Na mesma semana, só que em Madri, outro entregador também foi entrevistado. Nada temeroso, Isaac falou como primeiro entregador a ser parte em uma decisão do Tribunal Supremo da Espanha, relatando detalhes do seu trabalho, como a preocupação da empresa com o hamburguer no momento em que ele sofreu um acidente, e das dificuldades por que passou depois do infortúnio[2].
Por Renata Dutra e Vitor Filgueiras
Nos últimos meses, mobilizações de entregadores vinculados aos chamados aplicativos têm ganhado destaque no país, incluindo duas paralisações nacionais em julho. Fundamentalmente, eles demandam aumento dos rendimentos e melhoria das condições de trabalho nessa ocupação.
No Brasil, o trabalho de transporte e entrega de mercadorias (particularmente alimentos) por motos é antigo (com bicicleta é mais recente), mas essa ocupação tem crescido nos últimos anos. Entre os primeiros trimestres de 2015 e 2020, segundo a PNAD, o número de motociclistas ocupados passou de 459 mil para 693 mil. Esse incremento parece ter se intensificado com a pandemia, quando a atividade passou a ser essencial para o consumo de grande parte da população. Em maio deste ano, motoboys e entregadores, ocupações incluídas na PNAD Covid, somaram 917 mil postos.
Por Andréia Galvão
A greve dos entregadores por aplicativos, realizada em 01 de julho, constitui um marco para a organização e mobilização dos trabalhadores precários no Brasil. Pode-se dizer que foi uma greve bem-sucedida, tanto pela quantidade de envolvidos - visível nos buzinaços e cortejos de motos e bicicletas que percorreram as ruas de diversas cidades do país -quanto pelo impacto que teve nas redes sociais[2]. Impossível não tomar conhecimento da greve, ou do “breque dos APPs”, como uma parte do movimento se auto-intitulou, e de se solidarizar com ela.
Por Roberto Véras de Oliveira
A condição incerta e insegura do trabalho no Brasil
Nos últimos meses, a grande mídia tem anunciado (e comemorado) amplamente sinais de queda na taxa de desocupação no país, a partir de dados da PNADC divulgados pelo IBGE, assim como saldos positivos do emprego formal em 2019, segundo o CAGED(1). A PNADC, contudo, disponibiliza indicadores de mercado de trabalho que evidenciam as limitações do uso isolado da taxa de desocupação.
Por Clovis Scherer
A reforma trabalhista de 2017 prometeu “aprimorar as relações do trabalho no Brasil, por meio da valorização da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores”. Para tanto, estabeleceu a “prevalência do negociado sobre o legislado”, alterou a hierarquia entre acordo individual, acordo coletivo, convenção coletiva e lei, proibiu a ultratividade das cláusulas negociadas e ampliou a possibilidade de negociação individual entre empregador e empregado. A valorização da negociação coletiva deveria traduzir-se em intensificação da sua prática, em número e em temas tratados, com resultados que reflitam o interesse das duas partes e não de apenas uma delas. Ao mesmo temo, o nível de conflitos de natureza coletiva deveria refluir, por exemplo, com redução do número de greves.
Por Renata Queiroz Dutra e Selma Cristina Silva de Jesus
No último dia 12 de novembro de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 905 /2019, que institui o “contrato de trabalho verde e amarelo” e promove outras alterações na legislação trabalhista brasileira (1).
A medida teve por finalidade, declarada na explicação da ementa, a geração de empregos para trabalhadores que tenham entre 18 e 29 anos de idade. Essa finalidade, supostamente, seria alcançada a partir de uma figura contratual mais precária, estabelecida por prazo determinado e com severas restrições de direitos, com possibilidade de abarcar contratos criados até 2022.