Fernando Nogueira da Costa¹

Depois de oferecer quatro vezes uma disciplina eletiva no curso de graduação do IE-UNICAMP sob o título Economia no Cinema, em que focalizei o desenvolvimento mundial, ofereci no 1o. semestre de 2017 um curso denominado Economia no Cinema: Cidadania e Cultura Brasileira. Seu objetivo foi debater respostas apresentadas pelo cinema nacional e pela MPBE – Música Popular Brasileira sobre Economia à pergunta-chave: que país é este?

Os alunos e eu discutimos a dependência da trajetória brasileira, configurada através das interações entre diversos componentes de um sistema complexo, destacadamente, os direitos da cidadania (civis, políticos, sociais, econômicos e das minorias), conquistados ao longo da História do Brasil. Infelizmente, os deveres educacionais, culturais e comportamentais éticos e democráticos de todos os cidadãos ficaram relegados a segundo plano. Propiciarão essas interações a emergência de uma democracia socioeconômica e política?

O método didático adotado foi debater se as ideias abordadas pelos filmes ou por músicas são representativas (ou não) de distintas interpretações sobre o Brasil, aprendidas por leituras prévias da historiografia brasileira clássica, ou se são expressões de sentimentos populares a respeito de temas econômicos. Assim, estimulados por empatia, os estudantes obtiveram a apropriação intelectual dos temas apresentados.

Por uma ação talvez inconsciente – e feliz coincidência –, os filmes escolhidos como motivações para o debate tiveram em comum o destaque das mulheres como protagonistas-chave de nossa história. Senão, vejamos.

Desmundo é um filme brasileiro de 2003, dirigido por Alain Fresnot. O roteiro, adaptação do livro Desmundo de autoria de Ana Miranda, é de Sabina Anzuategui, Anna Muylaert e do próprio diretor. Todo o elenco teve que aprender o português arcaico, tanto que o filme é apresentado com legendas para ajudar na compreensão.
 
O filme é ambientado em 1570, época em que os portugueses enviavam órfãs ao Brasil para que casassem com os colonizadores. A tentativa era minimizar o nascimento dos filhos com as índias (miscigenação) e que os portugueses tivessem “casamentos brancos e cristãos”. Essas órfãs viviam em conventos e eram doutrinadas para serem religiosas. Oribela, uma dessas jovens, é obrigada a casar com Francisco de Albuquerque, um senhor-de-engenho desbravador de terras. Sua violação, movida pela energia sexual de seu possuidor, é sublimada por um mecanismo de defesa emocional em que seus sentimentos se transformam em ato socialmente não aceito, mas típico da identidade nacional. Há a “traição” com a miscigenação: a católica tem um filho fruto do ato de amor com o “marrano”, apelido pejorativo da época dirigido aos judeus.

Esta (re)criação artística de um passado possível representa não só a violência doméstica presente até hoje em lares brasileiros como também a mestiçagem brasileira. A grande maioria dos “cristãos-novos” — um em cada três portugueses que imigraram para a colônia era judeu com conversão forçada — se misturou depois de uma ou duas gerações com outras etnias, isto é, comunidades ou grupos de pessoas caracterizadas por uma homogeneidade sociocultural com língua, religião e modo de agir próprios.

Carlota Joaquina (Marieta Severo) era a infanta espanhola que casou com o príncipe de Portugal (Marco Nanini) com apenas dez anos. Ela se decepcionou com a estratégia geopolítica do “rei-fujão”, D. João VI, mas graças a esta houve o caso único de uma corte se transferir para sua colônia. O Império da dinastia Bragança impôs a unificação desse seu território ao contrário da América espanhola. Carlota se sentiu tremendamente contrariada quando a corte portuguesa veio para o Brasil, exultando quando retornou à Europa. Compensou sua insaciada sede de Poder pela busca de saciação sexual com amantes inclusive afro-brasileiros. Teve filhos com diversos homens.

Lima Barreto foi o crítico da época da Primeira República no Brasil, rompendo com o nacionalismo ufanista e criticando a suposta mudança republicana que manteve os privilégios de famílias aristocráticas e dos militares. No filme inspirado em seu livro, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, entre outros temas, destaca o protagonismo de Olga, a afilhada. Encarando seu marido oportunista, revolta contra a subordinação das mulheres ao horizonte do machismo da família patriarcal. Destaca o costume do casamento por interesse econômico e social, arranjado entre os pais.

Madame Satã (Lázaro Ramos) mostra, sob a repressão getulista, não só o confinamento dos negros na marginalidade, dada a falta de ocupações formais, mas também de outras “minorias”: Laurita (Marcélia Cartaxo), a prostituta imigrante nordestina e sua filha, e Tabu (Flávio Bauraqui), seu cúmplice homossexual.

Vimos também documentários – Utopia e Barbárie (Silvio Tendler, 2009) –, comparamos Um Sonho Intenso (2015) com O Brasil Deu Certo. E Agora? (2013), antes de assistir a vida rural nordestina – Eu, Tu, Eles (2000) –, cuja protagonista Darlene (Regina Casé), trabalhadora rural, impõe a convivência com três maridos e filhos de pais diversos. Daí, vimos a emigração nordestina para a metrópole – Hora da Estrela (1985) –, onde Macabéa (Marcélia Cartaxo) vive a frustração de seus sonhos por não ter a capacitação profissional requisitada. Já Aquarius (2016) mostra Clara (Sonia Braga), 65 anos, pertencente à casta dos sábios, resistindo às investidas da especulação imobiliária da casta dos mercadores.

Mesmo as cinebiografias – Vinicius (2005), Chico (2015), Raul: O Início, O Fim e O Meio (2012), Vou Rifar Meu Coração (2011), O Rap Pelo Rap e Funk Ostentação, O Sonho – mostram o papel-chave das mulheres na vida desses personagens. Chico Buarque é o único que teve apenas uma esposa. Não à toa, o Funk Ostentação canta: Dinheiro, dinheiro / Homi gosta de mulhé / Mulhé gosta de dinheiro...

[1] Professor Titular do IE-UNICAMP. http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

Este artigo reflete a opinião pessoal do autor.