TEXTO PARA DISCUSSÃO | Denis Maracci Gimenez e Rodrigo Sabbatini
Em 2014, em um encontro voltado para a cooperação acadêmica internacional, um importante representante da comitiva chinesa presente no Brasil foi questionado sobre o enorme dinamismo econômico promovido pelas relações simbióticas entre estado e mercado na China, especificamente, das relações umbilicais entre suas empresas estatais e suas empresas privadas. Reconhecendo de forma discreta a eficiência dessas relações na promoção do desenvolvimento econômico, passou a enfatizar a importância das ações coordenadas orientadas pelo planejamento. Seguindo em seu raciocínio sobre o “modelo chinês”, passou aos exemplos que os guiaram historicamente para a construção de um caminho próprio. Para a surpresa dos presentes, o oficial chinês destacou a experiência brasileira em seu processo de industrialização ao longo do período 1930-1980 como um exemplo virtuoso para a construção do novo modelo chinês a partir de 1978.
Demonstrando grande conhecimento sobre essa experiência desde o governo Vargas, a partir da década de 1930, passando por Juscelino Kubitschek nos anos 50 e pelos governos militares após a “Revolução de 1964”, expressou admiração pela virtuosidade do modelo brasileiro no que se refere às complementariedades e sinergias entre as ações das empresas estatais e de suas articulações com as empresas privadas nacionais e estrangeiras. Em conclusão, formulou uma questão que nos pareceu inquietante para ele e, sem que fosse sua intenção, constrangedora para os brasileiros presentes: por que vocês não fazem mais isso?
Tal indagação, além de constrangedora, é tão inquietante quanto percuciente, em especial para os brasileiros imersos na hodierna catástrofe nacional. O Brasil foi a mais bem-sucedida experiência de industrialização de um país periférico ao longo do século XX. O processo de industrialização do país ao longo de cinquenta anos produziu ao final da década de 1970 uma complexa sociedade urbana industrial, uma das mais importantes do mundo, capaz de incorporar os padrões de produção e consumo dos países centrais, estabelecidos a partir da II Revolução Industrial. Certamente, deve-se considerar aquilo de malsão expressou o “modelo brasileiro”: a pobreza das massas, a desigualdade supina, a precariedade das políticas sociais, a exclusão das maiorias. Ademais, a permanente dependência financeira e tecnológica nunca fora superada e nos acossou no momento de transformação radical do capitalismo em face da globalização financeira e de sucessivas revoluções tecnológicas a partir da passagem dos anos 70 para os anos 80 do século passado.
Não obstante, o sucesso foi inequívoco. O esforço em prol da industrialização iniciado pelo Presidente Vargas, prosseguido por Juscelino em seu Plano de Metas e não interrompido pelos militares depois de 1964, produziu uma forma peculiar e eficiente nas relações entre Estado e Mercado no Brasil, entre as empresas estatais, as empresas estrangeiras integradas ao projeto de desenvolvimento e as empresas privadas nacionais, em larga medida, constituídas a partir das fronteiras de expansão abertas pela ação estatal em suas várias dimensões, financeiras, produtivas e comerciais.
Trata-se de uma experiência bem-sucedida que enfrentou os desafios de uma industrialização levada adiante sob as condições impostas pelo capitalismo em sua fase monopolista. O processo de integração da economia brasileira a ordem internacional dominada por grandes corporações atuando sobre mercados internos de trabalho, significou enfrentar os desafios da mobilização de enormes massas de recursos financeiros concentrados, enfrentar os desafios da inovação e incorporação do padrão tecnológico radicalmente monopolizado pelas economias centrais, os desafios das enormes escalas exigidas e da complexa teia de complementariedades intersetoriais inerentes, enfrentar riscos estruturais do estrangulamento externo.
Como foi possível enfrentar esses desafios, entre outros, e ser bem-sucedido nesse improvável processo de industrialização modernizadora? E mais, tentando responder ao oficial chinês, como e por que o país interrompeu este processo virtuoso de desenvolvimento? Partiremos do argumento, já fartamente exposto por importantes intérpretes do Brasil moderno, que o desenvolvimento brasileiro, assim como em outras experiências de industrialização atrasada, foi caracterizado, antes de tudo, pelo protagonismo do planejamento, da coordenação e da ação direta do Estado no então incipiente sistema de produção capitalista brasileiro.
Ação integrada do Estado que logrou orientar, apoiar ativamente e complementar o esforço de industrialização do setor privado, dando um sentido a ele por meio dos bancos públicos e da ação das empresas estatais, definindo as decisões de investimentos, as prioridades, os papéis dos participantes, criando novos participantes privados ou públicos, em uma estratégia marcada pelo radical pragmatismo permanentemente adaptado às condições particulares de um país continental, de passado escravista-colonial, que buscava romper com a divisão internacional do trabalho.
Em dois tempos, o propósito desse estudo é tecer considerações sobre o sucesso de industrializações nacionais em condições históricas distintas. No primeiro tempo, a estratégia bem-sucedida da industrialização brasileira tomando em conta o protagonismo do Estado, particularmente do setor produtivo estatal (SPE) entre 1930 e 1980. Neste primeiro tempo, também estamos interessados em oferecer elementos, ainda que sintéticos, para refletirmos sobre a posterior renúncia a essa estratégia tão bem sucedida e eficiente em nossas desventuras no mundo globalizado, com resultados evidentes no processo de desindustrialização do país em curso desde a década de 1980.
Em um segundo tempo, trataremos da bem sucedida estratégia chinesa de industrialização a partir do final da década de 1970, sob a égide da globalização. A China adaptou às novas condições internacionais e às suas necessidades de país atrasado, as relações entre estado-mercado, empresas estatais e empresas privadas, com grande protagonismo de um poderoso Estado. Evidentemente, neste segundo tempo, o sucesso chinês aponta para a tese de que sob os ventos da globalização, radicalizou-se a necessidade do planejamento nacional e da articulação umbilical das relações estado-mercado, das empresas públicas e privadas, na estratégia de desenvolvimento nacional. Neste segundo tempo, portanto, o Brasil, protagonista do primeiro tempo, caminhou na contramão dos países periféricos vencedores, asiáticos em geral, particularmente na contramão da estratégia chinesa.
A esta Introdução segue-se mais quatro seções e breves conclusões. Na segunda seção trataremos do papel do Estado no capitalismo moderno, à luz de algumas das interpretações mais marcantes do século XX. Na terceira seção apresentaremos casos selecionados de desenvolvimento retardatário, discutindo de que forma o planejamento nacional e o setor produtivo estatal contribuíram para estas experiências. Na quarta seção será apresentada com maiores detalhes a experiência de modernização e industrialização do Brasil, uma das experiências de desenvolvimento mais bem-sucedidas do século XX. Em seguida, na quinta seção, apresentaremos de que forma o Estado chinês coordenou, sob as brumas da globalização, o mais impressionante processo de desenvolvimento contemporâneo. A última seção trará nossas conclusões.
Baixe o Texto para Discussão aqui.