Fernando Nogueira da Costa[1]
Enquanto Friedrich Hayek (1899-1992), conjuntamente com Ludwig von Mises (1881-1973), os maiores expoentes da Escola Austríaca de pensamento econômico, acreditam que o livre mercado tem o monopólio da virtude, estudiosos da Escola de Chicago acreditam que ele pode ser tão ineficiente quanto a intervenção do governo. No entanto, o fato de tanto uma quanto a outra acreditar que os preços são a chave para compreender a economia e que o livre mercado é preferível à intervenção levou a que essas duas tradições, na verdade competitivas, sejam comumente avaliadas como aliadas, conforme revela Nicholas Wapshott, no livro “Keynes x Hayek: a origem e a herança do maior duelo econômico da história” (Rio de Janeiro: Record, 2016).
Milton Friedman (1912-2006), quando pesquisou a Grande Crise de 1929, descobriu a ligação entre contrações desnecessárias na oferta de moeda e as recessões que se seguem. Essa medição de causalidade mostrou como os economistas de Chicago podiam diferir profundamente da Escola Austríaca.
À diferença de Hayek e Mises, que pensavam ser a atividade econômica demasiado complexa para ser quantificada e que as médias eram indicadores enganosos de como os indivíduos fixavam preços, a pesquisa de Friedman tomou como uma evolução da Ciência Econômica a proposta keynesiana de observar a economia como um todo e usar as médias para determinar a causa e o efeito das mudanças econômicas.
Na realidade, Friedman era um crítico de grande parte do trabalho de Hayek em Economia. Em contrapartida, sempre foi espontâneo em seu elogio a Keynes, por sua originalidade de pensamento e invenção da macroeconomia.
Mas, fosse qual fosse seu pensamento sobre Hayek como economista, ele aceitou o desafio político-ideológico que Hayek lançou para trabalhar com o intuito de reduzir o tamanho do governo. A tendência liberal de Friedman, inspirada no iluminismo clássico do século XVIII, que respeitava as virtudes do individualismo e desconfiava dos poderes do Estado, concordava perfeitamente com a desconfiança inata de Hayek do governo. Ambos economistas acreditavam que a inflação era uma calamidade mais odiosa do que o desemprego.
A justificativa seria porque a inflação atingiria a todos, e em especial o poder aquisitivo da riqueza líquida, enquanto o desemprego atingiria apenas aos “não competentes”, ou seja, “os párias” perdedores no jogo da economia de mercado, supostamente, regida pela meritocracia. O individualismo metodológico vê assim o problema do desemprego, ao contrário do que os macroeconomistas keynesianos o enxergam, como não fosse causado por carência de demanda efetiva. Na análise clássica da direita econômica, os próprios trabalhadores são os culpados por estarem desempregados, seja por seus sindicatos exigirem salário real acima da produtividade, seja por carência de “empregabilidade” por causa de suas deficiências educacionais.
Há fragmentação dos economistas norte-americanos entre conservadores-republicanos e liberais-democratas:
- de um lado, estão os “economistas de água doce”, assim chamados porque suas universidades se agrupam em torno dos Grandes Lagos: consideram, como Hayek, que a inflação é a pior maldição de um país;
- do outro, os “economistas de água salgada” que se formam nas faculdades das Costas Leste e Oeste: acham, como Keynes, que o desemprego é o mais grave problema econômico.
O “grupo de água doce” (hayekiano) acredita que:
- a economia deve ser pensada como um organismo sensível, governado por decisões racionais daqueles que participam do mercado;
- o governo deve assegurar apenas que o mercado seja livre e justo;
- os gastos do governo e os impostos pervertem a ordem natural da economia;
- os indivíduos tomam decisões racionais baseados no que entendem que o futuro trará;
- os empresários se abstêm de novos investimentos quando temem que os gastos do Estado para impulsionar o crescimento econômico levem a impostos mais altos e à inflação;
- a globalização e o aumento das comunicações eletrônicas levam a mercados mais eficientes e integrados que beneficiam todos;
- as recessões são parte da rotina de um ciclo econômico que devem ser suportadas, não curadas por artifícios apressados, até que o equilíbrio retorne;
- os melhores remédios são “do lado da oferta”, que estimulam os empresários a fornecer bens mais baratos e, assim, prega a remoção de inibições governamentais, como regulações e impostos à empresa.
Hayek, prócer da Escola Austríaca, reduz o ponto principal de The General Theory a uma opinião casuística que nega a preocupação fundamental dos economistas de confrontar o problema da escassez. Diz que o que Keynes adotou, teoricamente, é a suposição de uma economia da abundância, nirvana para os economistas!
Ao negar a operação do livre mercado, Keynes teria redefinido a escassez como um estado de coisas “artificial”, criado pela determinação das pessoas de não vender seus serviços e produtos abaixo de certos preços arbitrariamente fixados. Keynes ignorou os preços de mercado, segundo a crítica hayekiana, e sugeriu que eles entram em jogo apenas em raros intervalos, quando o “pleno emprego” é atingido e aí então os diferentes bens começam sucessivamente a tornar-se escassos e ter elevação de seu preço. É a situação chamada de “inflação verdadeira”.
A crença de Hayek é de que os preços são a chave para compreender o processo de produção — realmente a base para a compreensão do funcionamento de uma economia como um todo — e que os preços estão baseados na escassez dos bens. Ela o leva a desconsiderar sem explicação todo o conjunto da contra argumentação de Keynes de que os preços resultam da relação entre o desequilíbrio entre poupança e investimento (e consequente desequilíbrio entre oferta e demanda agregada) e o custo real de produção.
Para Hayek, o dinheiro constitui uma espécie de “junta frouxa” do aparato auto equilibrante do mecanismo de preços, capaz de impedir seu funcionamento. “Há pouca base para acreditar que um sistema com a estrutura moderna e complexa de crédito vai trabalhar tranquilamente, sem algum controle deliberado do mecanismo monetário”, escreveu Hayek. Mas ele disse isso em referência ao autocontrole dos bancos por aversão ao risco e não à regulação por parte do Banco Central.
Em uma advertência aos monetaristas que, como Friedman, iriam recorrer à Teoria Quantitativa da Moeda como panaceia, Hayek sugeriu que havia limites estritos a essa forma de administrar a economia. “Não podemos, como alguns escritores parecem pensar, fazer mais ou menos o que nos agrada com o sistema econômico jogando com o instrumento monetário”.
Além dessa, há também fragmentação da direita econômica entre ultraliberais e neoliberais. A corrente principal supera tanto o ultraliberalíssimo pensamento hayekiano quanto o monetarismo, após a experiência ruinosa, para o endividamento geral, de Margareth Thatcher na Inglaterra e o Reaganomics nos Estados Unidos.
No início dos anos 1990, a regra de Taylor, mostrando o trade-off entre taxas de juros e a taxa de inflação, substitui a curva de Phillips, o trade-off entre emprego e inflação, como a equação de escolha básica para os que administram a economia. Permanece a inteligência binária (“2 neurônio”) reducionista dos economistas que não conseguem pensar a complexidade econômica emergente das interações de múltiplos e diversos componentes. Os novos-clássicos passam conduzir a política monetária sob o critério de credibilidade com as informações, não contrariando as expectativas racionais.
Hayek ambiciona ver o poder de intervenção em O Mercado reduzido ao Estado mínimo. Defende até mesmo a emissão de moeda ficar em mãos privadas, desafiando o Estado soberano dotado do poder monopólico de emitir a moeda nacional. O outro monopólio que define um Estado soberano, o da violência, é dúbio se ele acha que se deve colocar também em posse privada, com guardas de segurança protegendo as propriedades privadas, ou se a segurança pública deve ter essa proteção como sua missão principal.
Esse radicalismo ultraliberal o coloca em oposição direta a Friedman, que, embora deseje que o governo seja minimizado, acredita que uma economia deve ser administrada para proporcionar crescimento sem inflação. O instrumento escolhido por Friedman, a política monetária, requer um Banco Central administrado pelo Estado.
Hayek acredita que a emissão de moeda é a chave para entender o ciclo de negócios, preocupação comum dele e de Keynes. Se não fosse pela interferência do governo no sistema monetário-creditício, não haveria flutuações cíclicas ou períodos de depressão. Se a questão da emissão de moeda fosse colocada nas mãos de empresas, cujo negócio dependeria de seu sucesso em manter estável a moeda que emitissem, a situação mudaria completamente em relação à existência de um Banco Central. Em função desse despropósito, os anarcocapitalistas hayekianos defendem o bitcoin coexistindo com outras criptomoedas na rota do dinheiro sujo!
[1] Professor Titular do IE-UNICAMP. http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/
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