NOTA DO CECON N. 19
Arthur Welle, Grazielle David Cardoso, Camila Krepsky, Juliane Furno, André Doca Prado, Renan Araujo e Pedro Paulo Zahluth Bastos (1)
Uma avaliação comparativa da gestão econômica das presidências de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) é de interesse para o debate público atual, mas só pode ser feita com rigor ao concluir-se o atual mandato presidencial. Para subsidiar tal comparação futura, apresentamos aqui alguns dados que capturam dimensões da economia brasileira ao longo do período em questão, focando nas dimensões da renda, emprego e desigualdade.
No que tange ao PIB, economistas liberais e neoliberais costumam afirmar que existe uma contradição entre busca do crescimento econômico e de maior igualdade, e que Lula teria privilegiado a igualdade, e Bolsonaro, o crescimento. Esse argumento não é corroborado empiricamente em ampla comparação feita por economistas vinculados ao FMI.
Em suas palavras, “um aumento de 1% na proporção de renda que concentra os 20% mais ricos (a desigualdade cresce) desacelera o crescimento econômico em 0,08% nos próximos 5 anos. Enquanto um aumento de 1% na renda dos 20% mais pobres (diminui a desigualdade) acelera o crescimento econômico em 0,38% nos próximos 5 anos” (Dabla-Norris et al, 2015, p.7).
A realidade do Brasil também parece indicar que não existe contradição entre busca do crescimento econômico e de maior igualdade. Nos governos Lula, o PIB real ampliou-se em 37% em conjunto com a redução de desigualdades.
Afirma-se com frequência que o governo Lula teria sido favorecido pela conjuntura internacional, enquanto o governo Bolsonaro teria sido prejudicado. Tal argumento tem um problema. Embora seja correto afirmar que a taxa de crescimento da economia mundial foi maior entre 2003 e 2010, o desempenho brasileiro nesse período foi superior à média, tendo sido inferior à média durante o governo Bolsonaro.
De fato, o crescimento anual médio do PIB com Lula foi de 4,05%, superior à média mundial de 2,73%. O contrário aconteceu no governo Bolsonaro. O crescimento anual médio do PIB com Bolsonaro foi de 1,12%, inferior à média mundial de 1,95%. As razões para a piora do desempenho brasileiro precisam ser avaliadas com rigor futuramente.
Às vezes se afirma também que o crescimento do consumo das famílias pode prejudicar o crescimento porque retira recursos que poderiam ser destinados ao investimento. Esse argumento é pré-keynesiano ao supor que a demanda efetiva não importa para definir o nível de produto, renda e emprego, e imaginar que não haveria espaço para crescimento simultâneo do consumo e do investimento. Esse argumento não parece ser corroborado pelos dados, como nos gráficos a seguir. Nos governos Lula ocorreu ampliação de 95% no volume de vendas do comércio, que estagnaram no governo Bolsonaro.
A disparidade verificada no volume de vendas ao comércio também se verifica na produção física industrial de bens de consumo, indicando que a produção local foi estimulada pelo crescimento da demanda efetiva, ao contrário do que o argumento pré-keynesiano defende. Enquanto a produção industrial de bens de consumo cresceu em 32% nos governos de Lula, ela caiu 8% no governo Bolsonaro.
Outro argumento típico entre autores liberais e neoliberais é que o crescimento salarial prejudica o emprego. Durante os governos de Lula, o salário mínimo aumentou 57% em termos reais, enquanto caiu levemente no governo Bolsonaro. Para dar uma ideia da importância do salário mínimo para a remuneração de trabalhadores, aposentados e pensionistas, a última Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), referente a 2021, indicou que quase 70% da população auferia um salário mínimo ou menos como renda domiciliar per capita. E 59,4% dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, ou quase 19 milhões de aposentados e pensionistas, recebem salário mínimo.
O crescimento do salário mínimo em termos reais, corrigido pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor-IBGE) pode ser traduzido em termos de cestas básicas, calculada pelo Dieese. Por este critério, o aumento do poder de compra do salário mínimo foi de 46% nos dois mandatos de Lula, enquanto cai 26% no governo Bolsonaro.
O aumento do poder de compra dos salários também foi favorecido pela política de regulação dos preços dos combustíveis nos governos Lula. A despeito do controle executado por Bolsonaro no segundo semestre de 2022, a política de repasse dos preços internacionais sem consideração dos custos locais de produção de petróleo resultou em elevação significativa do preço médio da gasolina.
O argumento que o crescimento salarial prejudica o emprego não é corroborado pela experiência brasileira durante os mandatos de Lula e Bolsonaro. A taxa de desocupação caiu 6 p.p. com Lula e 3 p.p. com Bolsonaro. Ademais, ela era muito menor no início do governo Lula do que no início do governo Bolsonaro, tendo terminado muito mais baixa no governo Lula do que no governo Bolsonaro.
O aumento do rendimento salarial nos governos Lula não impediu o crescimento acelerado do emprego formal, embora ele tenha custos de contratação maiores do que o emprego informal. O próprio aumento da demanda efetiva associado à inclusão de trabalhadores em novos mercados de consumo contribuiu para o aumento do emprego, em uma dinâmica virtuosa. A retração salarial, ao contrário, pode gerar um círculo vicioso, como Keynes já previa na Teoria Geral do Emprego, Dinheiro e Juro (Bastos, 2017).
Assim, o aumento do emprego formal e da remuneração salarial contribuiu para a redução da desigualdade de renda, medida pelo índice de Gini tanto pela renda domiciliar quanto pelas rendas do trabalho. A renda domiciliar é aquela que capta a totalidade de rendimentos, e não apenas aqueles vinculados ao trabalho.
Já o índice de Gini para a renda de todos os trabalhos indica que a elevação do piso salarial reduziu a desigualdade entre trabalhadores. Ainda que a elevação do piso possa ter induzido aumento também nas faixas salariais mais altas, isso provavelmente não ocorreu na mesma proporção da elevação do piso. De qualquer modo, ao contrário do que se alega em argumentos liberais e neoliberais, as políticas de redução da desigualdade não prejudicaram o crescimento do PIB nem do emprego nos governos de Lula.
Finalmente, outro argumento típico entre autores liberais e neoliberais é que o aumento do consumo das famílias pode prejudicar o crescimento porque retira recursos que poderiam ser destinados ao investimento. Não é isto que se verificou nos governos de Lula. A taxa de investimento em relação ao PIB cresceu em relação ao governo anterior em conjunto com a ampliação do consumo, para 19% do PIB. Já no governo Bolsonaro, as políticas orientadas para ampliar o investimento em prejuízo da remuneração e dos direitos do trabalho, e da proteção do meio-ambiente, não surtiram efeito significativo, de modo que a taxa de investimento média ficou em apenas 17,3% do PIB.
É provável que o corte de desembolsos do sistema BNDES para baratear o custo financeiro do investimento privado ajude a explicar a baixa taxa de investimento no governo Bolsonaro.
Seja como for, parece evidente que a hipótese de que há contradição entre busca do crescimento econômico e de maior igualdade não encontra sustentação empírica no caso brasileiro e em comparações internacionais recentes. É importante que a opinião pública brasileira esteja informada disso ao tomar decisões sobre o destino coletivo.
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NOTAS:
(1) - Arthur Welle é pesquisador do Cecon; Grazielle David Cardoso é pesquisadora do Cecon; Camila Krepsky é tecnologista do IBGE; Juliane Furno é economista-chefe do IREE; André Doca Prado é pesquisador do Cecon; Renan Araujo é pesquisador do Cecon; Pedro Paulo Zahluth Bastos é coordenador do Cecon.
(2) - Bastos, P. P. Z. (2017). Macroeconomia e mercado de trabalho: as principais teorias e o Brasil contemporâneo. Revista Ciências do Trabalho, 7, 51-107.
(3) - Dabla-Norris, M. E., Kochhar, M. K., Suphaphiphat, M. N., Ricka, M. F., & Tsounta, M. E. (2015). Causes and consequences of income inequality: A global perspective. International Monetary Fund.