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Autor:
José Pedro Macarini

Neste trabalho busco contribuir para uma compreensão mais aprofundada do movimento da política econômica dos Estados Unidos em um período marcante da sua trajetória no último quarto de século. Como é sabido durante as décadas de 70 e 80 observou-se uma convergência de processos potencialmente disruptivos que, dada a sua natureza estrutural e o longo período abrangido, permitem uma leitura pela ótica dos processos de crise capitalista. Enquanto o tema da crise econômica norte-americana suscitou uma bibliografia abundante e muito rica, o exame da política econômica durante a crise não recebeu a mesma atenção. Provavelmente isso em parte se explica pelo reconhecimento de que a crise é um processo inerente à dinâmica capitalista, tornando a política econômica uma manifestação reativa. Dessa perspectiva, a política econômica não cumpre um papel determinante e uma vez materializada a crise, esta impõe uma resposta da política econômica voltada ao objetivo de restauração da lucratividade do capital. No extremo oposto os economistas do mainstream ou negam qualquer eficácia à política econômica, com o que ela é vista como uma força desestabilizadora, ou, na tradição do keynesianismo neoclássico, a política econômica tem uma tal influência que o movimento de conjuntura chega a ser descrito como um reflexo do policy mix adotado.

Mesmo partilhando entusiasticamente daquela primeira perspectiva, julgo que o movimento da política econômica possui um certo grau de autonomia, v. g., reveste-se de complexidade maior que o captado explicitamente naquelas análises. Referindo-se ao plano da incidência de variados interesses particulares presentes na sociedade e que buscam ser representados através da política econômica: entrelaçando-se com o movimento mais amplo da política e suas particularidades institucionais (por exemplo. o regime democrático e a influência das conjunturas eleitorais, os problemas de harmonização política entre o Executivo e o Congresso, o estatuto independente do Banco Central); e ainda refletindo basicamente percepções dos seus principais atores, as quais, por suposto, são mediadas pela influência difusa de teorias econômicas - por tudo isso o entendimento da política econômica real vai além de uma caracterização geral do policy mix monetário-fiscal e seus efeitos previstos a partir de um determinado enfoque macroeconômico (não obstante a sua relevância e conveniência durante a análise) ou da explicitação de sua funcionalidade do ponto de vista dos interesses do capital.

Uma breve menção ao tratamento dispensado a política econômica em alguns excelentes trabalhos sobre a economia norte-americana durante a crise talvez permita esclarecer as razões de minha insatisfação.

Assim, alguns autores com uma visão radicalmente crítica do capitalismo como forma de sociedade, embora realizando valiosas análises de inúmeros desdobramentos da trajetória percorrida pelo capitalismo norte-americano no período, praticamente ignoram o movimento concreto da política econômica - dir-se-ia que suas análises ou negam qualquer significado diferentes políticas económicas de um período para outro ou consideram esse um aspecto de relevância secundária, justificando-se a sua omissão. Outros, também pertencentes ao variado campo da reflexão radical quando fazem topicamente menção à política econômica, preocupam-se em explicitar a sua lógica última enquanto arma da classe capitalista em sua luta permanente contra os trabalhadores_ A crise deveu-se à erosão de um marco institucional que mantinha sob relativo controle o conflito de classe, assegurando a lucratividade do capital A política econômica durante a crise objetiva em última instância reverter a contestação dos- trabalhadores, restabelecer a disciplina do trabalho e permitir uma restauração das condições de lucratividade do capital.

Uma interpretação distinta da crise estrutural do capitalismo norte-americano, formulada por Nell, faz interessantes observações sobre a contraposição entre políticas econômicas keynesianas e conservadoras nas décadas de 70 e 80, apontando-se os limites econômicos (internacionais) e políticos a estratégia keynesiana Mas a sua preocupação maior consiste em explicitar a errónea representação da economia real propiciada pelas diferentes doutrinas do mainstream e, portanto, como afirmou Keynes em sua polêmica com os clássicos, as consequências práticas necessariamente desastrosas a elas associadas se adotadas (como foram) pelos governos. Essa preocupação aparece com maior força ainda na obra penetrante de Minsky: a política económica de Carter, por exemplo, é apreciada do prisma da inadequação da teoria (no caso, a síntese neoclássica) de seus policy-makers.

A inflexão da política econômica norte-americana em 1979 (particularmente da política monetária) é frequentemente interpretada como reação à crise do dólar como moeda-chave do sistema internacional. Neste caso aponta-se uma dimensão fundamental da política econômica norte-americana - qual seja, aquela oriunda de seu status especial de núcleo hegemônico da economia internacional do último meio século - e certamente um fator muito presente na determinação da política de juros altos seguida a partir de 1979. Contudo, evocar essa dimensão não basta para dar conta do movimento da política econômica no período. Com efeito, influências de ordem doméstica - fundamentalmente a aceleração inflacionária - foram igualmente importantes na determinação da virada conservadora da política econômica; e durante a Administração Reagan, o desenho dado a política fiscal (gerador de desequilíbrios orçamentários permanentes), o qual não pode ser compreendido apenas a partir do projeto hegemónico, determinou uma sobre-reação da política monetária.

Todas essas abordagens. embora não propiciem uma compreensão plena da política econômica do período Carter-Reagan, oferecem, em graus variados, indicações de aspectos fundamentais que devem integrar a análise. Já as alternativas pinçadas do mainstream têm como característica analisar a coerência entre a escolha de objetivos e o uso dos instrumentos, a partir de um determinado enfoque macroeconômico. Assim, um conservador como Stein avalia que a política econômica de Carter (até 1979) era equivocada porque inerentemente inflacionária (mesmo com a economia distante do pleno emprego); um keynesiano como Tobin identifica erros de calibragem e uma lacuna importante (alguma política de rendas capaz de conter a alta da inflação); ambos, a partir de perspectivas distintas, dão grande ênfase à rationale doutrinária da política econômica, especialmente ao analisarem o período Volcker-Reagan. Muitos aspectos dessas análises são sem dúvida esclarecedores - mas a política econômica não é de forma alguma uma projeção prática de um determinado corpo doutrinário, com o que uma análise crítica da consistência teórica da política econômica (e sua adequação a realidade) não atinge o âmago da questão.

Convém, entretanto, evitar mal-entendidos. Minha insatisfação com a literatura existente sobre o tema reside na percepção de lacunas deixadas na reconstituição analítica do movimento da política econômica do período, as quais podem suscitar erros de interpretação. Espero ter alcançado urna compreensão mais satisfatória da natureza do movimento da política econômica observado durante as gestões de Carter e Reagan (e Volcker, no comando do Fed) - sem, entretanto, negar a relevância de certos aspectos já realçados na literatura (como procuro desenvolver nas reflexões conclusivas desta tese).

Da mesma forma é importante ter claro o plano em que se desenvolve a análise contida nesta tese. Meu objeto centra-se estritamente na compreensão da política macroeconômica dos Estados Unidos durante as presidências de Carter e Reagan (primeiro mandato). A sequência de decisões de política fiscal e monetária observadas nesse período descreve um movimento cuja apreensão exige atentar para a percepção que os principais atores do processo político-econômico tinham da evolução da conjuntura em diferentes momentos. Assim é possível observar como, ao longo desse período, notam-se mudanças de prioridades. impostas pelo comportamento da economia porém mediadas pelas percepções dominantes (inclusive envolvendo sérias divergências de perspectiva entre os policy-makers): em 1977/1978, a política econômica reflete a prioridade concedida à sustentação e aceleração do crescimento e a redução progressiva do desemprego; desde o final de 1978 e em 1 979/1980 a inflação torna-se a preocupação central, ao mesmo tempo em que a instabilidade pronunciada nos mercados de câmbio e as dificuldades de Carter de manter uma coalizão de apoio político a sua Administração restringem o espaço para a resposta da política econômica, levando-o a abraçar o receituário conservador da austeridade fiscal e da disciplina monetária; em 1981 combinam-se estranhamente uma preocupação com a retomada da prosperidade (que traduziu-se na rejeição da austeridade fiscal) com a desinflação (implicando um reforço da disciplina monetária), a qual teve um papel essencial no comportamento dos juros e câmbio observado na primeira metade da década. Por isso valorizo o exame do discurso da política econômica e incorporo à análise o material informativo localizado nos relatos dos bastidores do processo de formulação e condução da política econômica, feitos por ex-integrantes do governo e por jornalistas (apoiando-se em entrevistas com insiders). Não se trata de examinar a coerência da política econômica em relação a seus propósitos declarados {os quais. alguém poderia objetar. não passam da ponta do iceberg), mas sim de compreender adequadamente o que foi feito e por que durante o período em questão. Seria um erro menosprezar esse procedimento como se ele acorrentasse o analista ao plano superficial da política econômica: se se souber utilizar esse tipo de material as percepções e reais objetivos dos atores - e as demandas e pressões sobre eles incidentes-, enfim, o quadro que informou as decisões tomadas, dando forma ao movimento da política econômica, é iluminado de modo a permitir enxergar aspectos eventualmente negligenciados quando se limita a análise à rationale "objetiva" da política econômica. É minha esperança ter sido capaz de fazer esse uso criterioso e frutífero.